quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Paixão adolescente

      Rita trabalhava como vendedora na loja de calçados de Seu Antero.  Seu pai caíra de um andaime de uma casa em construção e por conta de uma fratura no tornozelo direito ficaria imobilizado por meses.  O dinheiro que recebia do INSS - seguro saúde - não dava pra chegar nem até o meio do mês.  A família era grande, o casal mais cinco filhos.  Coube a Rita a mais velha, com dezesseis anos, socorrer financeiramente a família.  O sacrifício era grande, teve que parar com os estudos, mas não havia outro jeito.
     Rita tinha saído pouquíssimas vezes do bairro onde morava.  Sua vidinha era bem simples: escola e tarefas domésticas.
    Agora saía cedinho de casa, tomava o ônibus 27 e descia bem próxima do trabalho.  Durante o percurso que durava quase uma hora, pela janela de vidro quebrado ia assistindo a cidade grande acordar: as pessoas indo e vindo apressadas, carros e ônibus disputando espaço na avenida, pontos de ônibus apinhados de trabalhadores e estudantes, guardas de trânsito e seus apitos em franca atividade nos cruzamentos; as lojas todas ainda fechadas, só a padaria "Pão Nosso", nesse horário, já tinha as portas abertas; pãozinho francês (que não vem da França) com manteiga não pode faltar no café da manhã nem do mais simples trabalhador.
     Rita era esforçada e logo "pegou o jeito" no atendimento aos clientes.  A necessidade do trabalho era tanta...não havia lugar para erros, só para acertos.  O salário no final do mês era o único pro pagamento das compras no mercado.
     Lidar com o público requer muita paciência, o que não lhe faltava nem quando atendia aquele cliente indeciso que nem sabe o que quer comprar.  Quantas vezes tirava pares e mais pares de sapatos, as caixas se acumulando em pilhas e, como o estoque ficava no piso superior, haja pernas pra subir e descer tantos degraus... tantas vezes...E são essas pessoas que deixam a loja sem levar nada.  Lá se foi o tempo perdido e a comissão não ganha.
     Joana também trabalhava na loja  e as duas tornaram-se amigas tão logo se conheceram, essas coisas de empatia a primeira vista.
     Joana sempre fazia comentários sobre a padaria "Nosso Pão".  Morou bastante tempo numa casa em frente e conhecia a família dos proprietários.  Seu Manoel, um português bigodudo e severo, chegou de Portugal com Dona Rosália, ainda bem jovens, fugindo dos estragos que as guerras causaram no continente europeu.  Chegaram com a cara e a coragem e já decididos em
montar o negócio.  Tudo foi feito com muito zelo como manda o figurino, conforme dizia minha avó. As paredes todas revestidas com azulejo português nas cores branca e azul, um espaço não coberto reservado às plantas, o "dengo" de Dona Rosália.  Depois de pronta, a obra primava pela ordem e higiene.  Numa prateleira, acima do caixa, pra que todos os clientes pudessem ver, não podia faltar o tal do galinho português.  Sobre o balcão algumas cestas de formatos diferentes, recheadas de pãezinhos e bolachinhas ficavam cobertas com toalhinhas feitas com tule e arrematadas com renda fininha, proteção contra moscas e abelhas, que chegam atraídas pelo adocicado das guloseimas.  De vez em quando, uma abelha ou uma mosca mais atrevida, na tentativa de furar o bloqueio, ficava entalada...e só na vontade...Dona Rosália fazia questão de trocar essas toalhinhas diariamente, marca registrada da sua padaria.
     O sucesso maior da padaria estava na variedade de bolachinhas preparadas artesanalmente por Dona Rosália, com receitas trazidas de Trás-os-Montes, segredo de família guardado a sete chaves, como ela costumava dizer quando algum cliente novato questionava sobre os ingredientes.
     Joana falava tanto nas tais bolachinhas que, num dia desses, Rita desceu no ponto da padaria; queria levar algumas pra casa.
     Naquele dia e nos outros também, Rita não conseguia tirar da cabeça aquele rapaz charmoso, de cabelos bem pretos já mesclados com fios brancos, que a atendeu no caixa.  Era Arnaldo, o filho mais velho de Seu Manoel.
     Na ida e na volta do trabalho, assim que o ônibus se aproximava da padaria, Rita espichava o pescoço tal qual girafa querendo apanhar a última fruta da macieira e até torcicolo ganhou nessas empreitadas.   Quando o trânsito estava mais lento, conseguia ver Arnaldo por alguns minutos a mais; era o suficiente pra ficar feliz.  Voltou à padaria muitas outras vezes, só no intuito de vê-lo e trocar aquelas mesmas palavras que todos falam com o caixa de um estabelecimento. Quando lhe vinha a coragem, arriscava falar sobre o tempo, o calor, a chuva.  Só isso...
     À medida que os dias passavam, o sentimento só aumentava.  Não contava a ninguém, nem à Joana.  Sentimentos contraditóios degladiavam-se no seu íntimo: ora queria contar tudo a ele, não importava a diferença de idade: ora a ideia da rejeição a atormentava.  Sofria solitária a sua dor.
     Num dia qualquer, voltando do trabalho, numa atitude nada programada, desceu do ônibus e, no trajeto que percorreu entre o ponto de ônibus e o estabelecimento, decidiu enfrentar a situação.  Contaria tudo ao Arnaldo.  Vou enfrentar, não aguento mais viver agoniada desse jeito.
     Entrou na padaria, escolheu um punhado qualquer de bolachinhas; ao acertar as contas no caixa, foi atendida pela irmã de Arnaldo.
     Sem querer, mas querendo muito, perguntou por ele.  Assim que ouviu a resposta, sentiu imediatamente um forte zumbido no ouvido, a cabeça rodou feito pião, a vista escureceu, não viu mais nada.
     Acordou no P.S., sua mãe ao lado, com diagnóstico de queda de pressão e cansaço.
     Somente ela e mais ninguém saberia o verdadeiro motivo daquele desmaio; uma resposta que a acompanhou por um longo período de sua vida: 
      __"Arnaldo tirou férias e viajou com a esposa e o filhinho."





 montar o negócio. 
   

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HIRIS LAZARIN