Rita trabalhava como vendedora na loja de calçados de Seu Antero. Seu pai caíra de um andaime de uma casa em construção e por conta de uma fratura no tornozelo direito ficaria imobilizado por meses. O dinheiro que recebia do INSS - seguro saúde - não dava pra chegar nem até o meio do mês. A família era grande, o casal mais cinco filhos. Coube a Rita a mais velha, com dezesseis anos, socorrer financeiramente a família. O sacrifício era grande, teve que parar com os estudos, mas não havia outro jeito.
Rita tinha saído pouquíssimas vezes do bairro onde morava. Sua vidinha era bem simples: escola e tarefas domésticas.
Agora saía cedinho de casa, tomava o ônibus 27 e descia bem próxima do trabalho. Durante o percurso que durava quase uma hora, pela janela de vidro quebrado ia assistindo a cidade grande acordar: as pessoas indo e vindo apressadas, carros e ônibus disputando espaço na avenida, pontos de ônibus apinhados de trabalhadores e estudantes, guardas de trânsito e seus apitos em franca atividade nos cruzamentos; as lojas todas ainda fechadas, só a padaria "Pão Nosso", nesse horário, já tinha as portas abertas; pãozinho francês (que não vem da França) com manteiga não pode faltar no café da manhã nem do mais simples trabalhador.
Rita era esforçada e logo "pegou o jeito" no atendimento aos clientes. A necessidade do trabalho era tanta...não havia lugar para erros, só para acertos. O salário no final do mês era o único pro pagamento das compras no mercado.
Lidar com o público requer muita paciência, o que não lhe faltava nem quando atendia aquele cliente indeciso que nem sabe o que quer comprar. Quantas vezes tirava pares e mais pares de sapatos, as caixas se acumulando em pilhas e, como o estoque ficava no piso superior, haja pernas pra subir e descer tantos degraus... tantas vezes...E são essas pessoas que deixam a loja sem levar nada. Lá se foi o tempo perdido e a comissão não ganha.
Joana também trabalhava na loja e as duas tornaram-se amigas tão logo se conheceram, essas coisas de empatia a primeira vista.
Joana sempre fazia comentários sobre a padaria "Nosso Pão". Morou bastante tempo numa casa em frente e conhecia a família dos proprietários. Seu Manoel, um português bigodudo e severo, chegou de Portugal com Dona Rosália, ainda bem jovens, fugindo dos estragos que as guerras causaram no continente europeu. Chegaram com a cara e a coragem e já decididos em
montar o negócio. Tudo foi feito com muito zelo como manda o figurino, conforme dizia minha avó. As paredes todas revestidas com azulejo português nas cores branca e azul, um espaço não coberto reservado às plantas, o "dengo" de Dona Rosália. Depois de pronta, a obra primava pela ordem e higiene. Numa prateleira, acima do caixa, pra que todos os clientes pudessem ver, não podia faltar o tal do galinho português. Sobre o balcão algumas cestas de formatos diferentes, recheadas de pãezinhos e bolachinhas ficavam cobertas com toalhinhas feitas com tule e arrematadas com renda fininha, proteção contra moscas e abelhas, que chegam atraídas pelo adocicado das guloseimas. De vez em quando, uma abelha ou uma mosca mais atrevida, na tentativa de furar o bloqueio, ficava entalada...e só na vontade...Dona Rosália fazia questão de trocar essas toalhinhas diariamente, marca registrada da sua padaria.
O sucesso maior da padaria estava na variedade de bolachinhas preparadas artesanalmente por Dona Rosália, com receitas trazidas de Trás-os-Montes, segredo de família guardado a sete chaves, como ela costumava dizer quando algum cliente novato questionava sobre os ingredientes.
Joana falava tanto nas tais bolachinhas que, num dia desses, Rita desceu no ponto da padaria; queria levar algumas pra casa.
Naquele dia e nos outros também, Rita não conseguia tirar da cabeça aquele rapaz charmoso, de cabelos bem pretos já mesclados com fios brancos, que a atendeu no caixa. Era Arnaldo, o filho mais velho de Seu Manoel.
Na ida e na volta do trabalho, assim que o ônibus se aproximava da padaria, Rita espichava o pescoço tal qual girafa querendo apanhar a última fruta da macieira e até torcicolo ganhou nessas empreitadas. Quando o trânsito estava mais lento, conseguia ver Arnaldo por alguns minutos a mais; era o suficiente pra ficar feliz. Voltou à padaria muitas outras vezes, só no intuito de vê-lo e trocar aquelas mesmas palavras que todos falam com o caixa de um estabelecimento. Quando lhe vinha a coragem, arriscava falar sobre o tempo, o calor, a chuva. Só isso...
À medida que os dias passavam, o sentimento só aumentava. Não contava a ninguém, nem à Joana. Sentimentos contraditóios degladiavam-se no seu íntimo: ora queria contar tudo a ele, não importava a diferença de idade: ora a ideia da rejeição a atormentava. Sofria solitária a sua dor.
Num dia qualquer, voltando do trabalho, numa atitude nada programada, desceu do ônibus e, no trajeto que percorreu entre o ponto de ônibus e o estabelecimento, decidiu enfrentar a situação. Contaria tudo ao Arnaldo. Vou enfrentar, não aguento mais viver agoniada desse jeito.
Entrou na padaria, escolheu um punhado qualquer de bolachinhas; ao acertar as contas no caixa, foi atendida pela irmã de Arnaldo.
Sem querer, mas querendo muito, perguntou por ele. Assim que ouviu a resposta, sentiu imediatamente um forte zumbido no ouvido, a cabeça rodou feito pião, a vista escureceu, não viu mais nada.
Acordou no P.S., sua mãe ao lado, com diagnóstico de queda de pressão e cansaço.
Somente ela e mais ninguém saberia o verdadeiro motivo daquele desmaio; uma resposta que a acompanhou por um longo período de sua vida:
__"Arnaldo tirou férias e viajou com a esposa e o filhinho."
montar o negócio.
Neste"espaço", divido com meus amigos um pouquinho de mim, um pouquinho do que gosto e acredito. E quero compartilhar com eles as pessoinhas que me fazem feliz e que me fazem acreditar na possibilidade de um mundo MELHOR.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
HIRIS LAZARIN